segunda-feira, 16 de maio de 2011

Gaveta 9 - Alma Encantada com o Bater de Asas das Borboletas Amarelas



















gustav klint

publicado em 18 janeiro 2011

CERRAM-SE AS CORTINAS


Oh, meu Deus, nem acredito, desde às 4h da matina, na maior correria, ninguém merece...que dia! Ah, meu Deus, que delicia, essa ducha quentinha vale um orgasmo. Nossa, eu poderia estender este banho por tempo indeterminado, mas não seria nada politicamente correto. Parece até que minha alma está sendo lavada. Hoje eu preciso, eu mereço. Enfrentar aquele fotógrafo arrogante explorando a Simone, típica modelo iniciante, frágil e chorosa, sem falar no atraso da produção para conseguir os sapatos da produção, era tudo que eu não precisava! Faltou muito, muito... pouco para que hoje eu armasse um barraco, com direito a saia de baiana com Gillette e tudo na barra.


Ah, que bom! Agora vou pedir uma comidinha chinesa, zapear na tv, procurar um bom filme, e largar meu peso neste velho sofá. Dizem que sou durona, e até sou mesmo, mas, não sou de aço. Eu necessito desta solitude, como do ar que respiro. Existem momentos que me entrego ao  ócio, vegeto mesmo. Nestas horas vivo o grande paradoxo “Hamletiano”:  “Ser??? ou não Ser”!  Cochilo, o barulho da televisão me chega como um mantra sonífero, a campainha toca, desperto num sobressalto e ainda me esticando toda, vejo a tv ainda ligada exibindo uma cena...não acredito, esfrego os olhos e a cena continua lá. Pasma vejo o “Christopher Reeve” depois da queda, sentado numa cadeira de rodas, mordendo (literalmente) um macaco no pescoço e conforme sua cabeça se move freneticamente  de um  lado pro outro, o pequeno corpo se sacode todo junto.


Hilário...ou melhor, trash. Como o cara conseguiu grana para um filme como este,  é o que me pergunto. A campainha toca de novo, desligo aquela aberração com intenções de ser entretenimento. Algo muito mais interessante e apetitoso me aguarda. Destranco a trava, e percebo um pedaço de papel azul entre o batente e a porta. Pego-o, parece um bilhetinho, abro a porta e lá está o rapaz do restaurante com minha encomenda. Pego meu jantar, caminho até o buffet depositando o pacote, pego o dinheiro e o pago. O rapaz sai com cara de nada por eu não ter lhe dado nenhuma gorjeta, o que sempre faço (quando posso!), mas fazer o quê, estou sem trocados oras. Hiiiiii... agora dei pra sentir culpa até por isso. Dane-se ele, está fazendo o seu trabalho. Eu não recebo nenhum extra pelas aporrinhações que agüento diariamente (sacudo os ombros com desdém como nos tempos de menina) e digo o que minha amiga Eugênia sempre diz nestas ocasiões: - “Ema, ema, ema... cada um com seus problemas”.

Sento novamente no sofá, ansiosa e faminta. Deposito o bilhete na mesinha de centro, primeiro meu yakisoba, destampo a caixinha de onde começa a sair uma fumaçinha e o odor dos legumes, do macarrão, da castanha, quentinhos, se libertam. Pego o rashi e começo vorazmente, a comer. De relance entre uma bocada e outra vejo o bilhete novamente, olho-o melhor, vejo meu nome (Ana) escrito e a letra parece ser da Paula, o que me deixa muito curiosa, porque um bilhete?

E me dou conta que deixei o celular no silencioso o dia todo por causa das fotos no estúdio; estico o braço para pegá-lo e o abro.  Escrito em poucas palavras, leio:
“O TONI FALECEU. HOJE , O CORPO ESTÁ SENDO VELADO NO ESTUDIO.
ENTERRO ÀS 17 HORAS.
TE AGUARDO LÁ, BEIJO.
SINTO MUITO.”
PAULA

Paro tudo.
Não faz sentido, não pode ser. Como assim?
Sinto a náusea, o cheiro da comida antes um doce prazer agora me é insuportável, tudo mudou em um segundo, estou parada, mas tudo está girando a minha volta.
Sensação sentida só quando eu tinha seis aninhos e fui com meu pai a um parque de diversões, ele me montou em um grande cavalo branco que sorria o tempo todo escancaradamente (Talvez de mim. Talvez soubesse da aflição que estava sentindo e por isso ria de mim). Ali montada, tudo girando, girando... girando, não agüentei e a náusea pela primeira vez chegou a minha vida, vomitei de forma desavergonhada, apesar da vergonha. Muito distante, pareceu-me ouvir a voz de papai pedindo ao operador que parasse o carrossel, que ainda girava, girava... senti a velocidade começar a reduzir, sinto as mãos de meu pai alçando-me de cima do cavalo branco risonho, me leva para terra firme, agacha-se sentando-me sobre sua perna dobrada, e tira um lindo lenço branco de linho que sempre carregava no bolso de traz de sua calça.
Limpa meus lábios, queixo, pescoço, e me eleva do chão, ajeitando-me em seu colo onde aprumo minha cabeça em seu ombro, voltando a respirar, deixo-me levar por meu pai para longe daquele monstro, e ele dando pequenas palmadinhas em minhas costas, diz que tudo vai ficar bem buscando me acalmar (confesso, ainda hoje sinto um medo irracional de carrosséis). Ah Pai! Como gostaria que estivesse aqui agora. Por favor me ajude!
Penalizada me levanto, visto um jeans,  camiseta, tênis, um casaco, cato a  bolsa, chaves do apartamento do carro, pronto peguei tudo. Saio porta afora.

Já no carro em movimento, saco o meu batom e dou umas pinceladas no lábios, pensando ao mesmo tempo o que estou fazendo? O Toni, meu amigo faleceu. Nos conhecíamos, eu, ele, Paula, Ricardo e João desde os tempos do “Marista”, de lá pra cá fizemos faculdade, nos formamos e  cada um iniciou-se em suas carreiras e a amizade só cresceu, vivíamos como família, nos encontrando vez ou outra para comemorações, refeições e na maioria das vezes, o local escolhido era o atelier do Toni, pelo aconchego, espaço e principalmente cenário de muitas vivências de amor, raiva, brigas, reconciliações, alegrias, tristezas, onde comemorávamos as vitórias e também muitas derrotas (porque não?), aliás fazíamos questão de também celebrar as perdas, idéia do Toni, eterno otimista, que dizia sempre: - Deixa disso gente. Nada de cair do salto. Com certeza vamos rir muito disso tudo daqui a um tempo e...ainda tirar uma lição. E assim noite adentro, terminávamos tudo num misto de risadas e lágrimas tudo misturado ao sabor de pêra e queijo, pistache, morangos e um champangnhe.

Merda...! Cacete de vida! Anteontem ainda fizemos um “Trombadão”, forma como costumávamos chamar nossos encontros relâmpagos, sem motivos especiais. E aí, meu choro jorrou, incontinentemente, infantil, pontuado de soluços, suspiros, seguidos de sucções nasais pelo ar que me falta.

Eu continuava dirigindo, nem sei como, tudo parecia aos meus olhos estar turvo e o carro seguia como que com vida própria, seguia o trajeto tantas vezes cumprido. Cheguei, estaciono e desligo o carro. Parte de mim não quer descer, cumprir protocolo algum, quer o Toni sempre vivo, sorrindo enquanto a outra metade de mim, deseja e precisa vê-lo para crer no até logo. Deixo minha cabeça cair por alguns momentos sobre as mãos que ainda estão no volante e me entrego ao pranto, um pranto pela ausência daquele que não se fará mais presente, mas sentido.
De impulso ergo-me ajeito-me e levo meu corpo para recostar-se ao banco, buscando forças e concentração, respiro fundo, enxugo as lágrimas com o punho do casaco, que parece não me aquecer, pois sinto um frio gélido em meus ossos. Pego a bolsa, fecho o carro e caminho atravessando a rua até o grande portão azul de ferro, onde se lê escrito em vermelho púrpuro:

ATELIER TONI BALDI
“o tempo e a vida,  Nas cerdas de meus velhos pincéis
contam minha história entre um champangne e outros.
 ninguém é de ferro, e afinal, adoro sentir
cócegas em meu nariz.”

Ah, querido Toni, como será sem você? Como poderemos? Seu velhaco e infame bom vivant. Meu Quixote contemporâneo! O último romântico da Vila Jacon partirá deixando neste tempo um hiato.
Logo após o portão, um coqueiro de cada lado causa a impressão de que atravessamos um portal, seguidos de estreliças distribuídas ao longo do caminho, marcado com pedras quadradas nas quais ele marcara signos de boa ventura. As pedras nos induz a darmos um passo de cada vez, heras cobrem os muros e sem que notemos conscientemente nosso humor ia se alterando e começávamos a penetrar na atmosfera onírica de sua arte, com alguns trabalhos marcados por uma crítica ácida e mordaz sobre o “homem social”.

A um passo de entrar no espaço, uma antiga oficina mecânica que ele transformara em uma grande caixa branca com temperamento francês, onde sua arte fazia-se presente em cada metro quadrado, cheio de informações da sua personalidade forte e jeito bonachão chic, nos tecidos quentes, brinquedos antigos expostos nas prateleiras,  objetos de decoração oriental, cadeiras e poltronas modelos únicos espalhadas, dois grandes sofás, livros de arte, principalmente pop-art que ele tanto amava, um balcão separa a cozinha, onde num armário guarda junto com algumas compoteiras herdadas da avó, sua linda coleção de copos (que secretamente eu desejava possuir igual), vacilo, percebo que ao pisar dentro do atelier todos estes detalhes queridos ganharão um novo valor na realidade, marcos de uma época que findou-se.

Dou enfim o passo e entro. Ao centro em uma mesa, um caixão preto laqueado com detalhes em dourado guarda o objeto “sagrado” onde um dia Toni habitara até hoje de manhã.
Lucas, seu jovem amante, está lá em pé branco como gelo, tavez seja sua primeira experiência com a morte, pobre moço. Paula e João caminham ao meu encontro nos abraçamos e choramos em uníssono. Ricardo sentado na poltrona grande do canto da sala onde tantas noites passamos filosofando sabedorias que só o álcool pode conceder alforria de serem proferidas em voz alta.
Juntos caminhamos até nosso canto, me soltando dos outros, sentei-me no braço da poltrona onde Rica estava e o envolvi com meus braços pelas costas deixando-me ali repousar, acompanhando sua respiração. Os outros também se sentaram e por algum tempo ficamos em um silêncio incomum para nós. Até que Ricardo com tom de raiva, alto demais para as circunstâncias disse: - Estúpido. É o Toni sempre foi um idiota passional!
Não entendendo nada eu perguntei o motivo de sua ira ao que ele respondeu com certa ironia: - Ah...então você não sabe? Ana, ele causou tudo isso. Ele por causa de uma discussão com Léo, fez mais uma de suas cenas histriônicas e se matou com um coquetel de álcool, Valium e  “coca”, assim oh (estalando os dedos)... Overdose, Ana, overdose.
Eu ouvia e não conseguia acreditar na possibilidade de suicídio, não o Toni, não, tudo era simples demais. Por uma bobagem qualquer? Não podia ser.

Léo, incomodado com Ricardo, se aproxima de nós e pede por favor a ele que respeite o momento. Ricardo se levanta e parte agressivamente para cima de Léo, perguntando com um forte tom de desdém, o que ele havia aprontado para que levasse Toni a se matar? Hem...diz? Não vai nos dizer Léozinho?
Léo lívido, mas com a voz contida e baixa, diz pausadamente: - “Ricardo, só por respeito ao seu sentimento e amizade pelo Toni que tentarei responder a sua pergunta. Eu o amava Integralmente. Eu amava, até mesmo
suas tolices.
Foram oito anos de vida e gozo, é... gozo! Nunca me importei com seus “pits” ou mesmo seu vício.
Porque o meu Toni, era o homem mais doce, generoso, honesto, humano que conheci. Vocês sabem disso. Portanto não vou permitir que neste último momento dele, alguém, seja quem for, ouviram bem? Ninguém! Maculará seu último ato.
Para mim, vocês são uma das partes boas dele, eu também aprendi a respeitá-los e amá-los, de verdade, mas...não posso deixá-los estragar o sagrado deste momento. Não permitirei”
Enquanto falava vi que lágrimas silenciosas corriam por sua face e obedecendo o meu sentir, meu corpo o abraçou com toda minha alma, gesto que logo toda turma acompanhou e ficamos ali um tempo, enquanto Léo chorou a separação de seu grande amor.

Bom, agora aqui jogada na poltrona, enquanto Ricardo e João consolam Léo, Paula recebe outros amigos e Gustavo o marchand de Toni, estou  quieta e começo a olhar realmente tudo a minha volta, as obras de Toni, meus amigos, outras pessoas, o caixão ao centro, suas duas tias por parte de pai, com suas figuras finas, que parecem ser fisicamente toda tradição mineira “viva”, com seus vestidos de renda pretos, véus  pretos a cabeça cobrindo seus rostos, terços à mão onde dedos sincronizadamente saltam de uma conta para outra recitando uma ladainha infindável, velando-o, postadas uma de cada lado, como dois soldados de “Hades”, pedindo por uma boa passagem para seu sobrinho através de seus portais.
Um outro grupo ao lado parece alheio à circunstância, com suas cabeças gesticulando de um lado para outro e às vezes tombando para trás, em curtos risos que sacodem seus corpos cobertos por belos panos. Com certeza aquele grupo muitas vezes servirá de inspiração para as criações de Toni, podía-se até reconhecê-los se, se olhasse mais atentamente algumas telas. Os pais de Toni vieram de Belo Horizonte para prantear e velar o filho único, pareciam sedados, sentados no sofá que ficava em uma parede vermelha carmim, estavam quietos e juntos, quase formando uma pessoa só. Sustentavam-se para não caírem e vez ou outra, erguiam o olhar, recebiam um abraço, um cumprimento de alguém que se aproximava para lhes dar os pêsames.
De repente, me senti personagem de uma ópera, entendendo o que Léo havia nos dito sobre  “o último ato”, compreendendo que Toni havia escolhido isso e preparara tudo, talvez, houvesse algo mais, motivos que desconhecíamos, ou só porque era assim que ele queria, que tudo acabasse como o final de um grande espetáculo, cerrando-se as cortinas do show da vida de Toni Baldi.

Sentindo novamente a náusea, entendi que tudo aquilo não era o Toni real e que precisava sair dali. Tudo me pareceu “fake” demais e ali era o último lugar que o verdadeiro Toni poderia estar. Caminhando em direção à porta, sem dizer nada a ninguém, refiz o caminho da chegada com passos rápidos, passando pelo grande portão e, de pronto, dobrei a coluna me apoiando com as mãos nos joelhos e por um instante busquei forças para sair daquele mal estar, me recompus e comecei a caminhar, caminhar... sem um destino certo, só queria não estar mais ali.
Cheguei à esquina em frente ao largo da Boa Morte, sorri vendo os tapetes amarelos, rosas, um pouco de azuis, brancos, formados pelas flores dos pés de Ipês que caiam cobrindo o chão, os bancos. Aquela imagem introduziu-me novamente beleza e fui sentar-me em um dos bancos, me acomodando deliciosamente, esticando os braços fiquei sentindo o ar morno da tarde, ouvindo os ruídos de vida e da natureza. E ali longe de todo aquele cenário grandiloqüente eu me reencontrei com meu amigo, que para alguns era demasiadamente rude e mal educado, para outros requintado demais, mas para mim ele era o que eu sentia naquele momento. Movimento, beleza, febre de vida.

Percebendo um movimento ao lado, abri os olhos e vi meus amigos (João, Paulinha e Rica) em pé, me observando, sorri para eles que logo se sentaram, e ali silenciados na alma, naquele banco de praça velamos e enterramos nosso amigo. Só nos levantando quando a noite começou a cobrir nossas lágrimas, saimos para buscar Léo e juntos irmos a um bom restaurante, terminarmos aquele dia com um porre de champanhe pela noite adentro com brindes a cada vontade e lembrança do grande artista, conselheiro, amigo, irmão... Toni Baldi. A nós e a Vida.
  
“Parem os relógios. Cortem os telefones.
Impeçam o cão de latir.
Silenciem os pianos e
com um toque de tambor tragam o caixão.
Venham os pranteadores.
Voem em círculos os aviões
escrevendo no céu a mensagem:
Ele está morto.
Ponham laços nos pescoços
brancos das pombas.
Usem os policiais luvas pretas de algodão.
Ele era meu norte, meu sul,
meu leste e oeste.
Minha semana de trabalho e
meu domingo.
Meu meio dia, minha meia noite.
Minha conversa, minha canção.
Pensei que o amor fosse eterno.
Enganei-me.
As estrelas são indesejadas agora dispensem todas.
Embrulhem a lua e desmantelem o sol.
Despejem o oceano e varram o bosque.
Pois nada mais agora pode servir.”

W.H. Auden

Fim

Jacqueline Durans


Esta é uma obra de ficção e foi
escrita antes dos fatos, ocorridos.
Qualquer semelhança com a
realidade é mera coincidência.

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