Sou uma alma encantada com o bater de asas das borboletas amarelas. Ganhei este espaço, através de um gesto de carinho. Gratidão! Aqui publico minhas gavetas; outros textos; idéias; insights; impressões pessoais sobre os movimentos humanos e também divulgo ações artísticas em seus mais diversos seguimentos de manifestações (seja no design, na literatura, artes visuais, artes cenicas, audio visual, arquitetura...etc). Seja bem vindo, eu o aguardava. Rio de Janeiro - Brasil
segunda-feira, 16 de maio de 2011
Gaveta 13 - Alma Encantada com o Bater de Asas das Borboletas Amarelas
edward hopper
publicado em 26 janeiro 2011
Memórias
Neste momento estou eu cá, a me perguntar, quando aconteceu de eu deixar de me entusiasmar com a luz que agora entra pela fresta da janela em um foco quente e amarelo difuso, desenhado pelas partículas das moléculas de poeira presentes no ar; quando eu deixara de me deitar ao chão, em espaço aberto para buscar nas nuvens do céu azul formas de pessoas, animais, objetos...abstrair; quando foi que a água perdeu seu frescor característico que tanto saciava minha sede?
Pensando neste conjunto de fatos, constato que em todos, de algum modo, a presença íntegra e amorosa de minha avó, Dona Anita Durães, naqueles tempos se fazia física.
Mulher ágil, com rosto de traços marcantes, aos 24 anos flagrara meu avô Francolino com uma rapariga no armazém de propriedade da família, em pleno coito. Esse fato quebrou seu coração e fez com que partisse com três crianças pequenas (a caçula que viria a ser minha mãe e meus dois tios), levando consigo um dinheiro reservado no fundo de uma gaveta, guardado dentro de uma meia. Partiu de sua terra natal, deixando para trás, casa, parentes, referências consangüíneas, culturais, tudo... sem intenção alguma de voltar algum dia. Situação e vontade mantida e respeitada também pelos filhos até o dia de sua morte em maio 1990.
Com muita dificuldade, minha avó conseguiu criar os três filhos dignamente, com seu salário que ganhava trabalhando na Fabrica de Tecelagem Matarazzo e, me ocorre agora, que nunca soube, ouvi ou vi um ato ou, palavra sequer que denunciasse a presença de um novo amor, um outro homem durante sua existência na Terra.
Nasci no Paraná, em Londrina, cidade que estava em seu auge nos anos 60 (século XX, rs), com seu perfil comercial e
cultural forte na época, o que fazia a cidade borbulhar com seus cassinos clandestinos e excitantes. Também era o endereço do “Centro de Fiscalização do Café para Exportação”, onde meu pai trabalhava.
No dia do meu nascimento segundo ouvi de todos, minha mãe acompanhada de uma amiga, que viria a ser a minha madrinha – a quem nunca conheci - foram juntas para o melhor hospital da região, localizado em Cambé, “uma cidadezinha que dizem ser do outro lado da rua da cidade de Londrina”.
Enquanto isso ele, o meu pai em algum ponto da cidade, num cassino qualquer, jogava seu “carteado”, sem consciência alguma de minha chegada. Este fato talvez tenha sido a gota d’água que culminou no fim da união deles. Oito meses após minha chegada a esta vida, minha avó com meu tio ao seu lado, chegou na cidade para visitar minha mãe e me conhecer, e logo no dia seguinte partiram, agora me minha nona me carregando aconchegantemente nos braços, para viver com eles no interior de São Paulo.
Foi com eles que apreendi as bases do que sou hoje, criada com muito amor e dedicação, numa pequena casa cheirando à limpeza, sabor de amor no tempero. O cheiro de giz de cera e do novo caderno de desenho, dos entardeceres cantados e sapateados ao som dos musicais “Hollywoodianos”. Eu secretamente era apaixonada por Gary Grant e Robert Redford, muitas vezes busquei suas bocas num beijo pela tela da tv.
Nesta época e por toda minha vida, alias ainda hoje, pouco soube realmente de minha mãe (quem ela era, o que fazia, com o que sonhava, o que pensava ou sentia sobre as coisas. Menos ainda, sobre meu pai que vi de relance uma só vez, quando me senti uma princesa, impedida de encontrar seu rei. Enquanto ele do lado de fora do “castelo”, chamava e pedia para me ver.
Nos arquivos da minha memória, a lembrança mais forte que tenho da minha mãe durante toda minha infância, é de suas visitas, quando então chegava em nossa casa parecendo ter saído de outro mundo, com seu estilo a lá Sofia Loren, vestido preto de poás grandes e brancos, cabelo negro, tão negro, e liso que parecia ter sido passado a ferro, como eu vira uma personagem fazer no seriado da “Noviça Rebelde”. Também marcante era seu perfume, muito doce para meu olfato de criança, tão doce que como um crime nunca confessado, me causava enjôos.
Assim o tempo foi passando, eu crescia sob o olhar atento de minha avó e de meu querido tio, de quem recebia todos os dias um “Sonho de valsa”, comprado na sorveteria do seu Carmo.
Desde minha chegada, minha avó parara de trabalhar na indústria para poder se dedicar a minha educação pessoalmente, levando-me ao jardim da infância pela manhã, e voltando à tarde para me buscar. Não consigo precisar quanto tempo eu ali ficava brincando de cantar, desenhar, escrever, contar, mas já gostava muito de tudo aquilo. Na saída, minha avó sempre lá estava me esperando (acho até que, ela nunca falhou um dia comigo pelo menos não me lembro).
Nosso retorno era sempre uma aventura, segura pela sua mão caminhávamos para casa, e quase todos os dias passávamos antes pelo “Bosque Municipal”, onde ela me comprava um picolé de limão do carrinho do seu Luís. Depois do sorvete, subíamos uma pequena trilha íngreme até o jardim japonês onde na fonte, ela pegava minhas mãos meladas pelo sorvete derretido, limpava meus lábios e então com suas mãos em concha me oferecia água, que por sinal era deliciosa e me saciava. Após todo este processo, retomávamos nosso caminho que passava defronte à Escola de Artes Municipal. Eu olhava enamoradamente para aquele lugar, sonhava estar lá. Eu via outras meninas entrando e saindo em grupos ou sozinhas, com seus cadernos grandes de desenho, suas bolsinhas, outras em roupas de bailarina cor de rosa (meia fina, tutu, fita nos cabelos, sapatilha...tudo), e eu imaginava a alegria que era fazer parte daquele grupo. Quanta alegria poder dançar, pintar, cantar e na minha imaginação eu era uma delas, sonhando e desejando muito um dia poder estar ali, mas naquele tempo nunca consegui. Acho que, minha avó uma vez disse algo que deixou-me a impressão de que ela não gostava da idéia, (tinha preconceito sobre o lugar e fazia outros planos para minha vida). Em algumas tardes “Tchecovianas”, na tranqüilidade de nosso lar com a cabeça em seu colo enquanto recebia seu cafuné ela me dizia: - Estude, flor! Estude muito e um dia você poderá ser médica.
A casa, principalmente às sextas feiras, cheirava a bolo e cera de chão, pois era o dia da faxina e eu podia então assistir televisão, até meia hora antes de meu tio chegar. Esse era o tempo necessário para o aparelho esfriar, para que ele não ficasse bravo comigo, pois temia que estragasse a tv, aparelho ainda raro na época. Sempre desconfiado e sabedor da cumplicidade entre eu e minha avó, ao chegar ele tocava nas costas do aparelho para sentir sua temperatura. As dezessete horas, impreterivelmente era a hora do banho e me preparar (ou melhor ser preparada, pois minha Avó fazia questão de que eu sempre estivesse “limpinha”, arrumada e bonita para o jantar, que, normalmente, era uma sopa de caldo de feijão grosso, com espaguete largo ou macarrão de conchinhas, azeite, um tomate, algumas batatas (às vezes batata doce também era inserida na receita), uma mandioquinha salsa, duas cenouras e uma folha de couve. Assim que meu tio chegava, se arrumava todos nós sentávamos à mesa posta, coberta com uma toalha de tecido branquíssima.
Aquela sopa era deliciosa, ainda posso sentir seu sabor, aqui, agora, e como ela me aquecia trazendo conforto. Eu era feliz sem o saber, e eu desconhecia tantos outros “sabores”.
A Dona Anita, minha avó, sempre acreditou em mim. Foi ela que me ensinou este olhar de “Polyana” - que possuo até hoje - como sua persistência, garra e força diante da vida. Ela possuía uma preocupação sincera em me fazer feliz. Apesar de todas as vicissitudes, sei que posso e devo continuar, muito ainda virá, estou viva e aqueles momentos que passamos juntas, nossa jornada como observadoras das nuvens e da luz, assim como aquele sabor da água que saciava minha sede, ou da sopa que satisfazia minha fome, nutriram não só meu corpo, mas meu espírito com uma energia de paixão pela vida, que me impedem em qualquer tempo de desistir. Hoje vem a memória a beleza, os sentimentos e a intensidade daqueles tempos vividos, ainda vivos dentro de mim, que tanto me ajudam a continuar caminhando e às vezes voando, porque não...
Fim
Jacqueline Durans
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